Usando diferentes suportes, Maiolino explora seus devaneios poéticos e mescla obras recentes com inspirações de séries seminais
A exposição individual “ERRÂNCIA POÉTICA”, de Anna Maria Maiolino, apresenta na Hauser & Wirth uma seleção de obras novas e recentes até 22 de dezembro. Por mais de cinco décadas, a brasileira se inspirou em sua história pessoal como artista, migrante e mãe, para produzir obras que desafiam implacavelmente as noções aceitas de desejo, linguagem e sexualidade ao mesmo tempo em que celebram a visceralidade da experiência corporificada. São mais de cinquenta das esculturas, desenhos, pinturas, fotografias e vídeos do artista, além de uma nova instalação site-specific que dá continuidade à sua íconica série Terra Modelada.
Sua migração do sul da Itália, no pós-guerra, para uma América do Sul politicamente instável, assim como sua passagem do idioma italiano ao espanhol e, depois, para o português, gerou um fascínio duradouro pelas questões de identidade. O seu trabalho mergulha numa gama de temas, desde o deslocamento cultural e linguístico até à privação e sustento, aos rituais domésticos diários. A natureza aberta da prática de Maiolino possibilita “devaneios poéticos”, que ela trabalha livremente por entre diversos suportes e das disciplinas. Evoluindo em uma sucessão espiral ao invés de linear, a arte de Maiolino oferece uma nova linguagem para o reino muitas vezes precário da existência humana diária.
No coração da exposição está “in locu”, da série Terra Modelada, uma instalação de argila não trabalhada, concebida inicialmente em 1998 para a 24ª Bienal de São Paulo. Em última análise, Maiolino considerou o espaço da Bienal pequeno demais para esse trabalho em grande escala e, nas duas décadas subsequentes, ela procurou uma oportunidade para realizá-lo. Como Maiolino imaginou para o espaço de 22 da Hauser & Wirth, “in locu” consiste em formas amorfas suaves que o artista rola, amassa e molda no local.
O laborioso processamento de matérias-primas de Maiolino é ritualístico e profundamente pessoal – ela disse que seu primeiro encontro com o barro no final dos anos 80 “provocou uma tempestade” dentro dela. Aqui, o toque do artista é gravado no barro infinitamente maleável do qual cada componente é feito, evocando o trabalho manual dos rituais diários e as funções corporais de comer e defecar. Nesse sentido, “in locu” serve como um lembrete para o espectador de seus próprios apetites corporais. O leve cheiro da argila molhada realça a temporalidade da instalação e, à medida que o material mutável continua a secar, mudando de cor, rachando e declinando durante toda a exposição, os visitantes são lembrados da mortalidade e de sua pungência.
Em suas novas pinturas da série Ações Matéricas, Maiolino continua com as técnicas utilizadas em seus trabalhos sobre papel, como em Aguadas. Ela cobre a tela em uma única cor – amarela, vermelha ou branca – e depois derrama tinta acrílica preta na superfície, manobrando intuitivamente a tela para guiar a tinta viscosa pelo espaço. A abordagem meditativa, permitindo que a gravidade e a superfície da tela determinem a composição, resultam em formas amorfas que ecoam as formas orgânicas das esculturas de Maiolino, como as Cobrinhas (2018), feitas de cimento e pó de mármore.
A exposição também apresenta uma série de esculturas de metal de Maiolino, incluindo três trabalhos de sua série Hilomorfos (2016), em homenagem ao Hylomorphism, a doutrina filosófica grega em que os seres físicos resultam da combinação de matéria e forma. As cinco obras de sua série Desde o Fogo (2018) são fundidas em uma liga de bronze e sustentadas por um bastão compacto de anéis abaulados sobre uma base densa, criando o que Maiolino descreve como “material híbrido”.
Para sua série Da Terra – Errância Poética (2018), Maiolino lança esculturas sem o uso de um molde tradicional. Em vez disso, o próprio material serve tanto como a escultura quanto o molde, repousando sobre um suporte de ferro enferrujado e envernizado. Estas esculturas recentes derivam de obras anteriores de Maiolino, como A Sombra do Outro, É o que falta e Ausentes.
Maiolino compara essas esculturas aos mitos sobre a origem da Terra, cavernas pré-históricas e o culto do princípio feminino, que ela descreve como “um remanescente da obsessão aborígene da humanidade por recuar para uma caverna no útero da terra – aquilo que nos alimenta e nos recebe depois da morte. Afinal de contas, numerosas analogias importantes podem ser traçadas entre o vazio do molde matricial e a caverna, ambos como geradores”.
Entre pausas
Junto com ERRÂNCIA POÉTICA, a Hauser & Wirth Publishers lança ‘Entre Pausas’, novo livro de artista que conta com 74 desenhos da série homônima de Maiolino. Em 1968, Maiolino trocou o Brasil, em meio à uma ditadura militar repressiva, por Nova York, junto com seu o marido e dois filhos, onde morou por dois anos atuando como parte da crescente comunidade de artistas latino-americanos da cidade.
Cuidando de seus dois filhos enquanto o marido trabalhava, ela muitas vezes se sentiu sobrecarregada pela vida doméstica e isolada como imigrante em um novo país. Aproveitando todas as oportunidades para fazer sua própria arte, Maiolino começou a desenhar em seus momentos de folga, capturando cenas de sua vida cotidiana com imediatismo e sagacidade. A série de imagens resultante também envolveu questões artísticas e políticas maiores e se tornou o ponto de gênese para os temas que ela revisitaria em sua arte pelas próximas décadas.
Além desses desenhos, o novo livro apresenta uma série de fotografias do arquivo pessoal de Maiolino, bem como dois poemas e um relato de seu tempo em Nova York escrito pelo artista, juntamente com as contribuições da psicanalista brasileira Tania Rivera e Randy Kennedy.