Artista cria uma paisagem marítima em obra na qual duas esculturas de 430 quilos são escoradas por bambus
“A imagem é sempre múltipla; ela laça várias coisas ao mesmo tempo”, diz o artista José Spaniol – e diante da instalação que ele expõe na Pinacoteca de São Paulo, não há como dissociar a visão de dois barcos de 430 quilos suspensos a cerca de 10 metros de altura por 80 bambus às ideias de tempestade e deriva ou a uma metáfora sobre a conturbada situação política no Brasil.
“Quando projetei tudo isso, em 2011, o contexto era completamente diferente”, afirma o escultor, pintor e gravador, comentando os atuais acontecimentos no País. Mais ainda, ele lembra que no ano passado, durante a execução da obra Tiamm Schuoomm Cash!, as notícias sobre a morte dos refugiados que tentavam atravessar o Mediterrâneo já tinham potencial para se atrelar a seu trabalho. Entretanto, muitas são as potências da imagem construída por José Spaniol para o octógono do museu.
Para o artista, sua instalação, inédita, remete, na verdade, a uma paisagem marítima. Nela, segundo sua concepção, um mesmo barco é poeticamente representado em dois momentos de uma tormenta – ou em dois “instantes de suspensão”. “Gosto muito de narrativas”, afirma. Mas a obra, é claro, está aberta a outras interpretações.
Curiosamente, como Spaniol destaca, o barco, enquanto signo, faz suscitar nos espectadores “uma coisa confessional”. Se por um lado Tiamm Schuoomm Cash! pode propiciar o resgate de memórias particulares e recordações da literatura, o trabalho também traz a lembrança das gravuras do mestre Hokusai – de frente para a instalação, é inevitável não pensar na Grande Onda de Kanagawa (1830-1833) do japonês ou em outras de suas criações de ukiyo-e sobre barqueiros em embates com o mar.
A riqueza de significações da obra de José Spaniol é despertada também pela monumentalidade do trabalho – e como parte dessa característica, sobressalta a questão da materialidade na produção do pintor, escultor e gravador. Se o espectador observar a instalação de uma forma mais pura, a peça revela-se como uma construção escultórica verticalizada composta de “um volume diante do outro”, explica o artista. Mais ainda, é possível dizer que ambos os volumes (os barcos) se apresentam elevados (ou escorados) por linhas (os bambus).
Esse raciocínio mais relacionado com a ideia de “neutralidade” prevaleceu na realização da obra, que nasceu de um desenho de 2011. “No início, pensei em buscar barcos prontos na praia, mas depois vi que queria uma escultura com cara de barco”, conta Spaniol. Sendo assim, inspirado por uma canoa do Rio São Francisco, ele desenhou as estruturas que integram a instalação – e os barcos foram construídos com compensado envernizado por Fabio Delduque e sua equipe da Arte Serrinha.
Outro passo ainda – e até então inédito na produção de Spaniol – foi trazer a onomatopeia para a instalação como uma maneira de trabalhar a “materialidade da água”. “A onomatopeia parece ser o meio do caminho entre a palavra e a imagem”, afirma o artista. Ele conta que registrou em seu caderno 31 onomatopeias relacionadas às diferentes “qualidades” e “mecânicas” das ondas do mar “ouvidas” na praia e anotadas.
É portanto desse elemento semântico e poético que surge o título da obra – Tiamm Schuoomm Cash!. As onomatopeias também deram origem a uma gravação sonora reproduzida no espaço expositivo (a locução é do próprio Spaniol e muitos visitantes relacionam a sonoridade, curiosamente, a uma espécie de mandarim) e às letras estampadas em parafina que ficam abrigadas no chão do octógono. Repetidas, consoantes e vogais materializadas e esbranquiçadas ajudam, afinal, a compor uma paisagem marítima no centro do museu.
JOSÉ SPANIOL. Pinacoteca de São Paulo. Praça da Luz, 2, telefone 3324-1000. 4ª a 2ª, 10h/18 h. R$ 6 (grátis aos sábados). Até 30/5
Texto de AMILA MOLINA, publicado originalmente no O ESTADO DE S. PAULO
em 27 Março 2016 | Atualizado em 12 Abril 2016